No momento de aproximar texto,
linguagem escrita, da voz e do corpo, temos também que conhecer o território da
escrita. Mesmo que muitas encenações passem a criar textos durante o processo
criativo, a linguagem escrita ainda é na maioria das vezes a forma com que nos
aproximamos da palavra. Assim, para pensar a relação corpo-palavra torna-se
necessário também entender a palavra enquanto escrita. Podemos, então, explorar
o território literário, no sentido de compreender o corpo que se encontra no
impulso criativo da palavra. As tendências mais contemporâneas retratam
justamente o momento de ruptura corpo-palavra, de desintegração do próprio
corpo do texto, de explosão da palavra. Essa ruptura, essa desintegração do
texto, começou com as vanguardas da metade do século XX, para as quais a
linguagem das palavras não mais exprimia a realidade física e espiritual do
homem. Temos no expressionismo uma poesia na qual o sujeito poético quer
expressar-se, mas precisa romper com a própria palavra para retratar as forças
interiores que o habitam. As metáforas, os sons exclamatórios, no limite da
linguagem, marcam um espírito de revolta, de sofrimento, que podemos
identificar com as idéias de Artaud.
A poesia criada pelos diferentes movimentos,
como o formalismo russo, o simbolismo, o futurismo, o dadaísmo, trata de
explorar, de brincar com as palavras na sua concretude, visual e sonora. No
teatro isso leva a experimentações variadas da oralidade e a criações
dramatúrgicas nas quais a palavra é elemento de jogo sonoro e de esvaziamento
do seu significado.
Não nos aprofundaremos aqui nas diferentes
vertentes da literatura dramática que surgem a partir desse esvaziamento da
palavra. É possível um estudo aprofundado sobre o tipo de relação do corpo com
a palavra que elas propõem nas suas dramaturgias. Temos, por exemplo, o Teatro
do Absurdo, que vai abrir uma relação particular com a palavra, embasada na
ruptura de significados narrativos. Caberá aos diretores concretizar em cena
tais relações, propondo diferentes caminhos ao ator. Aqui nos deteremos na
tentativa de reencontrar uma palavra que expresse conteúdos internos e que
estes se revelem na sua sonoridade.
No seu livro O prazer do texto (1974), Roland
Barthes menciona a possibilidade de uma escrita em voz alta,que seria a que
Artaud almejaria:
A escrita em voz alta não é expressiva; deixa a
expressão para o feno-texto, para o código regular da comunicação; ela por seu
lado pertence ao geno-texto, à significância; é transportada, não pelas
inflexões dramáticas, pelas entoações maliciosas, pelos acentos complacentes,
mas pelo grão da voz, que é um misto erótico de timbre e de linguagem, e que
portanto, tal como a dicção, também pode ser a matéria de uma arte: a arte de
conduzir o próprio corpo. [...] Em atenção aos sons da língua, a escrita em voz
alta não é fonológica, mas fonética; o seu objetivo não é a clareza das
mensagens, o teatro das emoções: o que ela procura são os incidentes
pulsionais, a linguagem revestida de pele, um texto onde se possa ouvir o grão
da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma
estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, e não a do
sentido, da linguagem. (BARTHES, 1974, p. 115)
Barthes destaca aqui o caráter sensual da
linguagem verbal, uma escrita que é uma fala, cuja articulação envolve e
mobiliza sensações corporais, não sendo restrita a uma emissão de significados
compreensíveis. Essa articulação sonora e sensual envolve aquele que escreve e
aquele que lê, como que criando um elo entre autor e leitor, que passa pelo
sensível, não apenas pela imaginação ou pela compreensão de idéias.
Zumthor trata da questão da leitura como
performance, como ativadora de um imaginário e de sensações que se dão no
corpo:
Ora, a leitura do texto poético é escuta de uma
voz. O leitor, nessa e por essa escuta, refaz em corpo e em espírito o percurso
traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado,
aqui, sobre a página. (ZUMTHOR, 2000, p. 102)
A escrita traz o corpo do sujeito da palavra. A
escrita poética é definida por Zumthor por esse critério, pela possibilidade do
leitor em criar um laço com o autor, receber o texto com prazer. Ele amplia o
conceito deperformance para todo fenômeno dirigido para a recepção, para a
percepção sensorial, que promova um engajamento do corpo.
Isso nos faz pensar sobre a aproximação em
relação ao texto, própria do trabalho do ator. Como abordar o texto será
definitivo para a relação que o corpo vai estabelecer com ele, ao memorizá-lo,
ao incorporá-lo para a cena. O teor poético dos textos também fará muita
diferença em termos de mobilização do receptor, ou seja, do ator. Entro aqui
numa questão bem específica do trabalho do ator, que passará pelas diferentes
funções, de leitor, de “falador”, até incorporar o texto. O ator não é o autor,
mas ele retoma este fluxo criativo que está no texto do autor. Este engajamento
corporal que existe no texto poético deverá ser reativado no corpo do ator,
pelo próprio texto, pelos sons, pelas imagens.
Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo que,
segundo Luis Garagalza, “se lança no concreto” afastando-se das interpretações
racionalistas e positivistas, trabalha com a potência poética das imagens. O
imaginário se confunde com o “dinamismo criador, com a amplificação poética de
cada imagem concreta”; os símbolos se encadeiam pelas “ressonâncias”, o homem é
um “sonhador de palavras”:
Sou, com efeito um sonhador de palavras, um
sonhador de palavras escritas. Acredito estar lendo. Uma palavra me interrompe.
Abandono a página. As sílabas da palavra começam a se agitar. Acentos tônicos
começam a inverter-se. A palavra abandona seu sentido, como uma sobrecarga
demasiado pesada que impede o sonhar. As palavras assumem então outros
significados, como se tivéssemos o direito de ser jovens. E as palavras se vão,
buscando, nas brenhas do vocabulário, novas companhias, más companhias. Quantos
conflitos menores não é necessário resolver quando se passa do devaneio erradio
ao vocabulário racional! (BACHELARD, 1988, p.17)
Esta escrita poética, simbólica, vai sugerir
também aos encenadores outras formas para o ator aproximar-se das palavras.
Experimentações livres sem um conhecimento a priori do texto tornam-se práticas
no treinamento e nos processos criativos. Memorizações livres, sem a preocupação
com a análise ou a interpretação dos textos, com o objetivo único de exploração
sonora desse material pelo ator, dando voz e corpo ao texto, são procedimentos
freqüentemente utilizados. Os significados serão depois organizados pelo
encenador, compostos juntamente com as ações físicas dos atores, revelando
associações inusitadas e não necessitando da “interpretação” por parte do ator,
que estará envolvido com a produção sonora do texto.
Aprofundaremos estas reflexões no decorrer do
trabalho. Concluo este capítulo com uma nova citação de Bachelard:
Sim, antes da cultura o homem sonhou muito. Os
mitos saíam da Terra, abriam a Terra para que, com o olho dos seus lagos, ela
contemplasse o céu. Um destino de alturas subia dos abismos. Os mitos
encontravam assim, imediatamente, vozes de homem, a voz do homem que sonha o
mundo dos seus sonhos. O homem exprimia a terra, o céu, as águas. O homem era a
palavra desse macroântropos que é o corpo monstruoso da terra. Nos devaneios
cósmicos primitivos, o mundo é corpo humano, olhar humano, sopro humano, voz
humana. (BACHELARD, 1988, p. 180)
Podemos ver simbolicamente a relação
corpo-palavra, uma relação que envolve um apropriar-se da linguagem verbal, da
fala, pelo corpo, e um expressar-se através dela. Na verdade corpo e fala estão
vinculados na sua origem e na sua essência, se acreditarmos na sua natureza
simbólica e mítica.
MOIRA STEIN
CORPO E PALAVRA:
ORGANICIDADE E RITUALIZAÇÃO DA FALA
EM PRÁTICAS FORMATIVAS DO ATOR CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em
Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para
a obtenção do grau de Mestre em Teatro. Orientador: Prof. Dr. Milton de Andrade
Leal Jr.
FLORIANÓPOLIS, SC
2006
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