domingo, 20 de março de 2022

a escrita do corpo e o corpo da palavra

 


No momento de aproximar texto, linguagem escrita, da voz e do corpo, temos também que conhecer o território da escrita. Mesmo que muitas encenações passem a criar textos durante o processo criativo, a linguagem escrita ainda é na maioria das vezes a forma com que nos aproximamos da palavra. Assim, para pensar a relação corpo-palavra torna-se necessário também entender a palavra enquanto escrita. Podemos, então, explorar o território literário, no sentido de compreender o corpo que se encontra no impulso criativo da palavra. As tendências mais contemporâneas retratam justamente o momento de ruptura corpo-palavra, de desintegração do próprio corpo do texto, de explosão da palavra. Essa ruptura, essa desintegração do texto, começou com as vanguardas da metade do século XX, para as quais a linguagem das palavras não mais exprimia a realidade física e espiritual do homem. Temos no expressionismo uma poesia na qual o sujeito poético quer expressar-se, mas precisa romper com a própria palavra para retratar as forças interiores que o habitam. As metáforas, os sons exclamatórios, no limite da linguagem, marcam um espírito de revolta, de sofrimento, que podemos identificar com as idéias de Artaud.

A poesia criada pelos diferentes movimentos, como o formalismo russo, o simbolismo, o futurismo, o dadaísmo, trata de explorar, de brincar com as palavras na sua concretude, visual e sonora. No teatro isso leva a experimentações variadas da oralidade e a criações dramatúrgicas nas quais a palavra é elemento de jogo sonoro e de esvaziamento do seu significado.

Não nos aprofundaremos aqui nas diferentes vertentes da literatura dramática que surgem a partir desse esvaziamento da palavra. É possível um estudo aprofundado sobre o tipo de relação do corpo com a palavra que elas propõem nas suas dramaturgias. Temos, por exemplo, o Teatro do Absurdo, que vai abrir uma relação particular com a palavra, embasada na ruptura de significados narrativos. Caberá aos diretores concretizar em cena tais relações, propondo diferentes caminhos ao ator. Aqui nos deteremos na tentativa de reencontrar uma palavra que expresse conteúdos internos e que estes se revelem na sua sonoridade.

No seu livro O prazer do texto (1974), Roland Barthes menciona a possibilidade de uma escrita em voz alta,que seria a que Artaud almejaria:

A escrita em voz alta não é expressiva; deixa a expressão para o feno-texto, para o código regular da comunicação; ela por seu lado pertence ao geno-texto, à significância; é transportada, não pelas inflexões dramáticas, pelas entoações maliciosas, pelos acentos complacentes, mas pelo grão da voz, que é um misto erótico de timbre e de linguagem, e que portanto, tal como a dicção, também pode ser a matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo. [...] Em atenção aos sons da língua, a escrita em voz alta não é fonológica, mas fonética; o seu objetivo não é a clareza das mensagens, o teatro das emoções: o que ela procura são os incidentes pulsionais, a linguagem revestida de pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, e não a do sentido, da linguagem. (BARTHES, 1974, p. 115)

Barthes destaca aqui o caráter sensual da linguagem verbal, uma escrita que é uma fala, cuja articulação envolve e mobiliza sensações corporais, não sendo restrita a uma emissão de significados compreensíveis. Essa articulação sonora e sensual envolve aquele que escreve e aquele que lê, como que criando um elo entre autor e leitor, que passa pelo sensível, não apenas pela imaginação ou pela compreensão de idéias.

Zumthor trata da questão da leitura como performance, como ativadora de um imaginário e de sensações que se dão no corpo:

Ora, a leitura do texto poético é escuta de uma voz. O leitor, nessa e por essa escuta, refaz em corpo e em espírito o percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a página. (ZUMTHOR, 2000, p. 102)

A escrita traz o corpo do sujeito da palavra. A escrita poética é definida por Zumthor por esse critério, pela possibilidade do leitor em criar um laço com o autor, receber o texto com prazer. Ele amplia o conceito deperformance para todo fenômeno dirigido para a recepção, para a percepção sensorial, que promova um engajamento do corpo.

Isso nos faz pensar sobre a aproximação em relação ao texto, própria do trabalho do ator. Como abordar o texto será definitivo para a relação que o corpo vai estabelecer com ele, ao memorizá-lo, ao incorporá-lo para a cena. O teor poético dos textos também fará muita diferença em termos de mobilização do receptor, ou seja, do ator. Entro aqui numa questão bem específica do trabalho do ator, que passará pelas diferentes funções, de leitor, de “falador”, até incorporar o texto. O ator não é o autor, mas ele retoma este fluxo criativo que está no texto do autor. Este engajamento corporal que existe no texto poético deverá ser reativado no corpo do ator, pelo próprio texto, pelos sons, pelas imagens.

Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo que, segundo Luis Garagalza, “se lança no concreto” afastando-se das interpretações racionalistas e positivistas, trabalha com a potência poética das imagens. O imaginário se confunde com o “dinamismo criador, com a amplificação poética de cada imagem concreta”; os símbolos se encadeiam pelas “ressonâncias”, o homem é um “sonhador de palavras”:

Sou, com efeito um sonhador de palavras, um sonhador de palavras escritas. Acredito estar lendo. Uma palavra me interrompe. Abandono a página. As sílabas da palavra começam a se agitar. Acentos tônicos começam a inverter-se. A palavra abandona seu sentido, como uma sobrecarga demasiado pesada que impede o sonhar. As palavras assumem então outros significados, como se tivéssemos o direito de ser jovens. E as palavras se vão, buscando, nas brenhas do vocabulário, novas companhias, más companhias. Quantos conflitos menores não é necessário resolver quando se passa do devaneio erradio ao vocabulário racional! (BACHELARD, 1988, p.17)

Esta escrita poética, simbólica, vai sugerir também aos encenadores outras formas para o ator aproximar-se das palavras. Experimentações livres sem um conhecimento a priori do texto tornam-se práticas no treinamento e nos processos criativos. Memorizações livres, sem a preocupação com a análise ou a interpretação dos textos, com o objetivo único de exploração sonora desse material pelo ator, dando voz e corpo ao texto, são procedimentos freqüentemente utilizados. Os significados serão depois organizados pelo encenador, compostos juntamente com as ações físicas dos atores, revelando associações inusitadas e não necessitando da “interpretação” por parte do ator, que estará envolvido com a produção sonora do texto.

Aprofundaremos estas reflexões no decorrer do trabalho. Concluo este capítulo com uma nova citação de Bachelard:

Sim, antes da cultura o homem sonhou muito. Os mitos saíam da Terra, abriam a Terra para que, com o olho dos seus lagos, ela contemplasse o céu. Um destino de alturas subia dos abismos. Os mitos encontravam assim, imediatamente, vozes de homem, a voz do homem que sonha o mundo dos seus sonhos. O homem exprimia a terra, o céu, as águas. O homem era a palavra desse macroântropos que é o corpo monstruoso da terra. Nos devaneios cósmicos primitivos, o mundo é corpo humano, olhar humano, sopro humano, voz humana. (BACHELARD, 1988, p. 180)

Podemos ver simbolicamente a relação corpo-palavra, uma relação que envolve um apropriar-se da linguagem verbal, da fala, pelo corpo, e um expressar-se através dela. Na verdade corpo e fala estão vinculados na sua origem e na sua essência, se acreditarmos na sua natureza simbólica e mítica.

MOIRA STEIN
CORPO E PALAVRA:
ORGANICIDADE E RITUALIZAÇÃO DA FALA
EM PRÁTICAS FORMATIVAS DO ATOR CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teatro. Orientador: Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Jr.
FLORIANÓPOLIS, SC
2006 

 

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