quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

múltiplas poéticas

 LEMINSKI NÃO É PRODUTO LIMPINHO, HIGIÊNICO


Em 24 de agosto de 2024 Paulo Leminski Filho completará 80 anos.
Como assim, “completará”, Leminski não está morto? – você pode me corrigir.
Sim e não.
Morto, Leminski continua mais vivo do que muitos vivos.

E neste ano em que ele completará oitentão, já percebo sinais de fumaça de que querem transformá-lo em mercadoria higienizada, palatável, rentável – bem adaptada a esses tempos de falsificações mequetrefes e negociações vergonhosas.

Para “chover no piquenique”, bem ao gosto do poeta, passo por aqui para lembrar algumas palavras que ele disse em entrevista a mim, em outubro de 1986, e que está devidamente registrada nos anais artístico-culturais deste Brasil que insiste em não abandonar sua fase anal e adia sempre para o dia de São Nunca o sonho de País do Futuro.

Preste bastante atenção:

“O negócio é o seguinte: a arte é tutelada pelo Estado ou é tutelada pelo mercado. Um dos dois mandará na arte – essas são as leis que o real quer pregar. No Ocidente, é o mercado que determina a obra de arte. O mesmo escritor que acha indecente que em Cuba o Estado financie a arte não acha indecente que seu trabalho seja tratado como mercadoria. A ideia de inutensílio é uma negação de ambas. Ela afirma que a arte não serve pra nada justamente porque só serve para o engrandecimento da experiência humana. Apenas isso”.

Paulo Leminski Filho, é bom lembrar, também escreveu poemas como este:

nunca quis ser
frequês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
obrigado
hasta la vista

queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
– cala a boca
e pro relógio
– abaixo os ponteiros

*****
Prestou bastante atenção?
Podem até me deixar falando sozinho, mas os tempos mudam, e tem gente vendo, viu?

                                     Ademir Assunção


PELOS VÃOS, BRECHAS E FENDAS

"Não deixes portas entreabertas
Escancara-as
Ou bate-as de vez.
Pelos vãos, brechas e fendas
Passam apenas semiventos,
Meias verdades
E muita insensatez."

Cecília Meirelles



RITO DO AMOR MORTO

o que fazer das minhas mãos
que não lavram mais o sonho,
não jogam a tarrafa de luz da manhã
sobre os quintais do mundo velho,
não desenham a imagem
do ansiado homem novo,

não acreditam mais na revolução?
que fazer dos meus olhos,
duas minas d'água,
de onde escorrem minhas melhores memórias
Iluminadas, florais.

por fim, que fazer deste amor morto
que trago no colo pra te devolver,
se não te acho mais.
vou deita-lo num barco azul
e solta-lo no cais
na corrente de mar
que leva às geleiras
solitárias, longínquas,
abrigo de corações tombados,
pra nunca mais,
pra nunca mais.

Fernando Leite Fernandes 


Nem todos os dias são de paz.
Hoje,
coragem
e o preto e branco
pra não revelar
que eu ando a(r)mada
de batom grená.

Flávia Gomes 


                                Márcio Coelho 


a indignação

me levou à arte

minha arma branca


Artur Gomes 

se alguém pensa em transformar minha poesia em mercadoria depois da minha morte não contem com a sorte vou morder o calcanhar e beber o sangue de todos filhos das putas que vendem                                       ver/duras como se fosse frutas

Palavra insubmissa

que o próprio sentido

retalha,

e se espalha

como cardume anônimo

de partículas falhas,

assomando,

e depois sumindo

da superfície da fala.

 

Marcantonio Costa

2012


Poema de um livro inesquecível: "Regras de fuga", de Eleasar Venancio Carrias.

                                                 Adelaide do Julinho


 SPINOZA

 

As translúcidas mãos do judeu

Lavram na penumbra os cristais

E a tarde que morre é medo e frio breu.

(As tardes às tardes são iguais.)

As mãos e o espaço de jacinto

Que empalidece no fundo do Ghetto

Quase nem existem para o homem quieto

Que agora sonha um claro labirinto.

Não o turva a fama, esse reflexo

De sonhos no sonho de outro espelho,

Nem o temeroso amor das donzelas.

Livre da metáfora e do mito

Lavra um árduo cristal: o infinito

Mapa d'Aquele que é todas Suas estrelas.

 

Jorge Luis Borges

[Tradução ao português brasileiro de Dougras Dieguez]

 

Jorge Luis Borges (1899 — 1986)

“O tempo é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me arrebata; mas eu sou o rio. Tempo é o tigre que me destrói; mas eu sou o tigre. Tempo é o fogo que me consome; mas eu sou o fogo.”

Cresceu falando inglês e espanhol em Buenos Aires. No ano seguinte Borges, com 9, traduziu para o espanhol “O Principe Feliz”, a história para crianças de Oscar Wilde.

Com 11 anos já lia Shakespeare, no original, parte de sua educação bilingue. Em casa, convivia com a biblioteca de mais de mil volumes, do pai. Em 1914, no começo da Primeira Guerra, Borges foi com a familia morar em Genebra, Suiça, onde passou dez anos.

Publicou os primeiros poemas em espanhol em 1923. Em 1945 escreveu o conto El Aleph, onde, num degrau de escada de um porão, o personagem principal da história, o poeta Daneri (uma mescla de Dante+Aligheri) descobre o infinito, a fonte de toda inspiração no universo.

Em 1950 Borges, com 51 anos de idade, fica completamente cego e escreve o poema:

“Nadie rebaje a lágrima o reproche
esta declaración de la maestría
de Dios, que con magnífica ironía
me dio a la vez los libros y la noche (a cegueira).”

“A verdadeira história não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu.”

“De todos os instrumentos, o mais maravilhoso de todos é o livro. Os outros instrumentos são extensões do corpo. O microscópio e o telescópio são uma extensão da visão. O telefone é uma extensão da voz e da audição. A pá e a enxada são extensão dos braços. O livro é uma coisa completamente diferente: é uma extensão da memória e da imaginação.”.

“Estoy solo y no hay nadie en el espejo.”

“Acredito que, com o tempo, chegaremos ao ponto em que não precisaremos mais de governo.”

“Quando os escritores morrem eles se transformam em livros – o que me parece uma reencarnação nada má.”


“Não tenho certeza se de fato existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei…”


“Deixe que os outros se vangloriem de todas as paginas que escreverem. Prefiro me vangloriar por todas as paginas que li.” 


 Histórias de amor - capítulo 1

Meu pai morreu no dia 11 de abril de 2017.

Só quem já precisou juntar, separar e se desfazer dos pertences de alguém que morreu, alguém que amávamos, com quem acumulamos histórias, sabe o quanto é difícil.

 Entre as caixas de fotografias, encontrei um postal antigo. Uma foto linda, um tanto sombria. Do outro lado um texto em francês. O postal é antigo, mas não original. É uma cópia. O que fazia entre as fotografias de meu pai a cópia de um postal antigo escrito em uma língua que ele não falava?

 Fiquei intrigada, obcecada com o objeto. Eu tampouco falo francês. Mas, antes de pensar em buscar uma maneira de traduzir, minha cabeça criou inúmeras versões para o postal. Uma carta de amor? Quem seria Camille? Talvez a mensagem de um soldado lutando a primeira guerra longe de casa? Longe da família? Em nenhuma das versões que criei tratava-se de um postal turístico, uma lembrança de viagem. E assim deixei, sem tradução.

 E meu pai? Por que guardava essa lembrança? Seria presente de uma namorada? Um amor? Alguém que esteve na França? Seja como for, devia ter valor para ele. Um postal original importante para alguém lá na França, uma reprodução importante para alguém aqui no Brasil. Tantas histórias atravessadas que minha cabeça tentava abarcar, talvez para escapar da dor de ver meu pai, uma fortaleza, um homem de mais de um metro e oitenta e cinco, ser devorado pelo câncer.

 O efeito que o postal causou em mim não passou com o fim da arrumação, nem com o luto. Ou talvez eu precisasse dele para manter meu pai por perto de alguma maneira. Emoldurei e coloquei na parede da sala para conversarmos de vez em quando, sem nexo, sem razão, na língua francesa que eu não domino, pelos labirintos da memória. Porque os fatos são definitivos, mas as lembranças, ah, essas nós recriamos todos os dias, todas as vezes que vasculhamos a memória.

 Meu pai morrer é um fato, a maneira como eu escolho lembrar dele muda o tempo todo. E entretida em elaborar a memória, nem percebi o fato mais importante do postal: foi escrito no dia 11 de abril de 1918, mesmo dia em que meu pai morreu, exatamente 99 anos antes.

 Às vezes, gosto de pensar que o postal não é uma carta de amor e não diz nada de importante e que meu pai jogou ali por acaso, não por amor. Apenas para que eu, um dia, encontrasse e, sem perceber, estabelecesse esse elo a partir de datas que, objetivamente, nem notei que se repetiam, mas falavam de amor comigo em outro idioma.

 Para mim, esse cartão postal fala de amor.

 P.s. antes que alguém traduza, eu prefiro não saber o conteúdo. Gosto mesmo é do mistério.

                                        Luciana Zagato 



PSIA

Psia é feminino
de psiu;
que serve para chamar a atenção
de alguém, ou para pedir
silêncio.
Eu berro as palavras
no microfone
da mesma maneira com que
as desenho, com cuidado,
na página.
Para transformá-las em coisas,
em vez de substituirem
as coisas,
Calos na língua; de calar.
Alguma coisa entre a piscina e a pia.
Um hiato a menos."

Arnaldo Antunes 

A Elevação da Cruz-Peter Paul Rubens


ARTHUR RIMBAUD Para saber mais sobre Rimbaud aqui uma resenha da revista CULT
https://revistacult.uol.com.br/home/rimbaud-o-rebelde/

 por Dioran Machado

Foi um poeta francês que exerceu grande influência na poesia do século XX.
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891) nasceu em Charleville, França, no dia 20 de outubro de 1854. Filho de um capitão da infantaria e de uma camponesa teve uma educação rígida.

Na adolescência, se rebela e começa a escrever poemas. O autor produziu suas obras mais famosas quando ainda era adolescente sendo descrito por Paul James, à época, como “um jovem Shakespeare”. Como parte do movimento decadente, Rimbaud influenciou a literatura, a música e a arte modernas.

Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
Ainda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas, vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, pas dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncio assombrados de anjos e universos;
– Ó! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!

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