Trem da Consciência
Não espere que eu fale só de estrelas
Ou do vinho feliz
Que eu não tomei
Porque
Fora de mim
Não levo além da sombra
Uma camisa velha
E dentro do peito
Um balde de canções
Uma gota de amor
No útero de uma abelha
Não repare se eu não frequento o
clube
Dos que sugam o sangue das ovelhas
Ou amargam o mel
Dessa colméia
É que eu já vivo
Tão pimenta
Tão petróleo
Que se você acende os olhos
Me incendeia
Hoje em dia
Pra gente amar de vera
É preciso ser quase
Um alquimista
Ou talvez o maquinista
Do trem da consciência
Pra te amar com tanta calma
E com tanta violência
Que a tua alma fique
Toda ensanguentada
De vivência
poema de Salgado Maranhão – musicado por Vital Lima – gravado por Zeca
Baleiro no CD AmorÁgio
clic no link para ouvir https://www.youtube.com/watch?v=oTLb8B_firA
DÁDIVAS
Para Delon
Ir ao barbeiro para adiar o tempo
cobrir a vergonha com o trabalho dos homens
esconder o peso em pálpebras escuras:
fatigante o ofício de amansar ondas
restituir sulcos e cimentar poros
num corpo abandonado.
Calamos nossos desperdícios, decerto
mas a gravidade é densa e sempre vence
a maçã nos livros de física
enquanto a força da tormenta corrói
nossos cascos.
Somos fracos e secos como a sarça
que não queima.
Pudéssemos, domaríamos o leão
que esfacela o torso
mas dádivas de areia não devem ser recusadas.
Angel Cabeza
Uma aranha
ela surgiu não sei de onde
quando abri o Dicionário de Filosofia
de José Ferrater Mora
(no verbete Descartes, René;) mi-
núscula
com suas muitas perninhas
quase invisíveis
cruzou a página 1 305 como se flutuasse
(uma esfera de ar
viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
fascinado
indagava:
como pode residir
insuspeitado
nestas encardidas páginas
- em minha casa, afinal de contas -
um tal ser
mínimo mas vivo
consciente de si
(e como eu
parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
tão espantado quanto estou
com este nosso inesperado encontro?
Ferreira Gullar
[Em alguma parte alguma] - Raptado
da time line no face de Dudu Galisa
Teu luminoso riso
transborda a doçura
do tempo, evoca minhas
tardes crepusculares
e dormita os últimos
vestígios do dia.
Tua voz, pausadamente,
sussurra no compasso
do tempo e acalenta,
mansamente, o meu
cálido desejo.
Teus cabelos esvoaçantes
e encaracolados são como
os dourados raios de sol que
penetram, vertiginosamente,
minha fascinação.
Tu és o que, surpreendentemente,
surge nas esquinas e imprimes,
no tempo, a beleza e o encanto
etéreo.
Tu és a existência e a liberdade
como um pássaro que sobrevoa
o mar.
Dudu Galisa
(lembrando Borges)
Nus e silêncios
coabitam meus espelhos
(mergulho
e
espanto)
abismos refletidos
nova e (irre)conhecida
história
Memória
Em meu dedo
o teu dedal
(tento, mãe
costurar tua memória
prender-te ao que me resta)
Incertos pontos
que a vista embaçada
não deixa urdir
Dalila Teles Veras
Do livro Retratos Falhados – 2008
ouvi o canto da sereia
(violada noiva de morticínio
e guerra) e sobrevivi (os
olhos cheios d’água, a
garganta obstruída, os
ouvidos sedosos)
com a fúria dos corações bastardos
nas cidades gentrificadas
nos bairros racistas
nos hospícios continentais
com rádios petrificados
tocando “like a stone”
para amolecer
repetidamente
o coração
(sou um terrorista
em chamas,
aquisição antiinquisição)
ouvi o canto da sereia
in a room full of emptiness
vi a incineração de bruxas
pelas próprias bruxas
a santa inquisição mudou de lado
e o pálio pasto do passado
continua idílico e ridículo
os fascistas do meu tempo
os fascistas do meu tempo
estão tomando demais
o nosso tempo
esses sujos e surdos odiadores da arte
a velha chaga, a velha cantilena
os dedos do poder sempre em riste
mas, a vida vale a pena
e tudo que existe, resiste
entre os cachos de araçá na imensidão
azul,
calada, Nix lava e estrala
estrelas em sua peneira
Um medo danado de nunca mais me deparar
com aquela
frase. Depois passei a achar que
os grifos
direcionavam muito as releituras.
E os substituí
por microdobradinhas nas
páginas.
(Cocteau: “Uma única frase, e o
poema todo é
levado aos céus!”.) Mas se
este método tem
a provável vantagem de
atenuar a
arbitrariedade e a feiura dos grifos,
algumas vezes,
no entanto, ao reler estas
páginas, não
encontrava o motivo delas
terem sido
condecoradas com a dobradinha,
ou achava mais
de um motivo para tanto.
Coisas de louco
com as quais, bem ou mal,
“abastecemos
nossa obsessão” (Philip Roth).
Penso até que a
literatura se alimenta desse
medo. (Waly
Salomão: “Escrever é se vingar
da perda”.)
Afinal, de onde vêm os versos
senão dos grifos
e dobradinhas que aplicamos
na existência,
momentos que roubamos do mundo,
instantes que
nossas solidões recrutam para
(W.B. Yeats) o
“imundo ferro-velho do coração”?
Marcelo Montenegro
um estranho entre estranhos, nômade
entre escombros, procuro sem
procurar, um não-lugar, o ventre
de látex de uma replicante quase
humana, as ruínas enfim apaziguadas
da bombonera, as águas que refluem
pra dentro da baía de todos
os infernos, ali, onde a eternidade
são os dentes de estanho do último sol
mastigando oceanos como fatias
de pizza, lançadas ao ocaso
do fundo de um naufrágio, ante
a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee
Há dois anos e, quem imaginaria... a pandemia
continua, sem previsão de fim...
QUASE AGORA
Depois a gente esfrega o chão
recolhe os tapetes
ergue os varais com as toalhas e os lençóis
corta a grama que já extrapolou os limites
abre as persianas e deixa chegar outro sol
depois a gente corta o fio
afia a navalha
estende o cordão entre as paredes
pendura as fotografias que sobrarem no baú
precisaremos afinar o olhar - o jeito certo de
olhar -
para não perder nenhuma palavra desviada
daqueles olhares estancados da vida
como meros ingredientes do nada
depois a gente chora
enxuga o leite derramado
diz o amor engolido a sete chaves
corre o risco de perder a hora, o trem, a viagem
depois do fim
e recolhe cada um dos abraços deixados de lado
na cama, na poltrona, na cadeira da cozinha, sobre
o armário
empilha um por um, dobrados e cobrados,
nunca dados, os beijos desejados
por ora, resta-nos a máscara
o lábio amargo
a garganta seca
luvas guardando dedos sem anéis
em mãos mil vezes lavadas em água, sabão e
desespero
por ora, já é quase agora
essa pobre senhora desconhecida
estendida no varal entre razões escusas
a vida - por um fio.
(Nic Cardeal, 13.03.2020)
tio sam, o insaciável comedor
não quer a existência de mais ninguém
fora de sua imensa barriga obesa
o Donald, dono de toda a riqueza,
destrói tudo que não serve pra ele,
o maior provocador de lixo do planeta
está cada vez mais voraz.
o império mais sujo impera sobre nós,
répteis dominadores,
corruptores de ratos feitores
hereditários de capitanias do sul.
A esperança é a revolta
das formigas carregadeiras
de machu piccho
aos catadores de papelão,
dos pescadores envenenados
das lamas da infâmia da terra plana
à chama da Amazônia
e do litoral .
Soneto profético
A bola de cristal é opaca e preta,
nela pouco se vê ou se pressente.
O vidro estilhaçado de uma greta
libera a luz noturna do presente.
Antevejo um plantio da semente
incapaz de dar paz a este planeta,
pois você, o jasmim e a violeta
florescem contra mim feito serpente.
Enxergo nada além desse horizonte,
onde ao escuro sucede o mais escuro.
O certo é não prever nenhuma ponte
que possa me levar ao seu futuro.
Na bola opaca eu leio, transtornado:
seremos bem felizes no passado
Antonio Carlos Secchin.
“- mamã; pra que serve a ONU?
- pra protocolar o fim do mundo”
Do livro LUMINARES, LT, 1980
ogivas mostram seus dentes-gengivas
sirenes sibilam assobios de espanto
aquele menino aquela menina
seguem sombreados pela neblina
pisam neve respingada de sangue
fundem-se somam-se se danem
ecoam nos ouvidos ecos estampidos
silvos cantam bombas fogos estilhaços
é tempo explosivo, templo de aço
pavor em gritos: acode? quem socorre?
escorrem pedaços de prédio nas cabeças
tanques no caminho canhões retorcidos
cadáveres pelas ruas gosto de genocídio
quem garante o existo, quem diz estou vivo
olhos são vidros e não cabem lágrimas
azuis verdes vermelhas – retinas flácidas
o piscar reativa impactos clássicos
lágrimas lágrimas lágrimas secam
torradas no fogo da minha casa acesa
carrego no peito casacos brinquedos
paranoia da fuga do combate ao vivo
tostados feridos – tempos de medos
mísseis cruzam & cospem seus ativos
estradas pro inferno ônibus sem (dex)tino
meu lar meu país minha escola meus pais
pra onde? pra quando estou indo? volto
pra sentir sede e frio junto a um prato de fome
a guerra só me ensina que eu me afundo
nem tenho idade para morrer, nem pra tanto
tonto olho o céu e só vejo magias traçantes
um cogumelo brota – bruto sumo do perigo
não para de nevar gotas de sangue
no fogo minha pele ainda em chamas
é o conflito do inverno em pleno inferno
e eu, pacifista desalmado, no calor do front
na cidade onde a guerra mora ao lado, ontem
Luis Turiba
https://coletivomacunaimadecultura.blogspot.com/2022/03/por-onde-andara-macunaima.html
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