quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Artur Gomes 77

 poema para o povo

 em tempo de abertura

 

quando você descobrir

que no meu quarto moram

exilados e subversivos,

perceberá o perigo

de dormir comigo

numa cama fria de uma Frei Caneca

ou se mandar de vez

para a esquerda de Jesus!

 

quando das grades,

paredes e muros

descobrir amor,

o povo estará liberto

e poderá seguir: Fidel

Guevara Pabblo Neruda ou

Luther King

 

- sem precisar pedir esmola –

 

basta lembrar

que o aborto

da manhã perdida

é uma menina-nua

in-consciente e tesa

 

e para o que já foi deposto:

mais vale o céu

a estrela

o mar,

que o punhal ou sabre,

ou mesmo a bomba sábia

que de uma vez arrasa

mas não basta por si só

 

pois se os sinais dos templos

ainda não ruíram

é porque alguma coisa ainda existe

por detrás das crenças

ou mesmo desse Deus

em quem acreditamos

 

e para o que foi detido:

mais vale a terra

o trigo

o grão

 

que a navalha ou corda –

que amarra

prende

e corta

mas não basta

 

não reforça

e nem destrói

tudo de uma vez

 

- porque renasce e continua ...

 

e para a morte :

não é preciso golpes

       nem estrelas

       nem estradas

 

e para o povo

não é preciso o golpe

         nem promessas

         nem palavras

 

é preciso pão

 

Artur Gomes

na coletânea Ato 5

Coleção UNIVERSO

 Campos dos Goytacazes-RJ – 1979

 

Obs.: este poema foi o vencedor do III Festival de Poesia Falada de Campos, na época realizado pelo Departamento Municipal de Cultura, que tinha em sua direção o saudoso poeta e jornalista Prata Tavares

Em 1980 fui levado por Osório Peixoto, para participar  da Semana de Cultura no  SESC da Tijuca, que era coordenado pelo professor  Ivan Cavalcanti Proença. Quando no palco, terminei de falar este poema, fui conduzido para uma sala, por um soldado da PF para um interrogatório que durou mais ou menos umas 6 horas. Só fui liberado na madrugada quase ao raiar de um novo dia depois daquela noite escura. Tinha uma namorada na época, de nome Maria Helena, estudante do Colégio Benetti, onde Ivan Proença era o responsável pela cadeira de cultura popular, e a noite me levou para um bate papo com sua turma sobre O Boi-Pintadinho, livro que havia acabado de lançar.

 

canção de amor por um pedaço de LatinoAmérica

                                                em parceria com Kapi

 

ao ver-te assim Nicarágua

em migalhas

mutilada –

quisera dar-te um leito

um prato

um peito

 

quisera ter-te

dentro dos poemas

fora das calçadas

fora dos caixotes

quisera como gente

 

quisera dar-te tanto

amanhecer de esperanças

sem fantasmas

sem trincheiras

quisera ter-te agora

ao redor da minha mesa

ver e ter teus passos

a caminho de resgates

que não fossem incertezas

 

quisera dar-te em sangue

tudo o que não comes

pois só pode saciar-te

em pratos que não são teus

pois os teus, eu sei

são restos

de rostos transfigurados

e sombras e madrugadas

e mortos em estilhaços

todos velados sem lençóis

 

quisera dar-te

qualquer coisa, amiga!

e que fosse fogo, força

e fé com finalidade

de estancar o que for preciso

e re-forçar os essenciais

 

quisera dar-te

uma estrada estreita

imensamente escassa

de rajadas e execuções

completamente ampla

de mentes novas

e humanas definições

 

quisera dar-te em sonhos

o que tiveste m pesadelo...

 

e plantar sobre o teu solo

outra América Central

com uma dose dupla

de antídotos capazes

contra as garras da discórdia

que se instalou sob os teus pés

 

e não seria preciso

que necessariamente fosse

uma estrada comprida

uma bonita estrada

caminho ao infinito

mas justamente fosse

uma humana estrada

para amparar-te agora

 

quisera dar-te um atalho

que fosse teu agasalho

para o refúgio dos homens

de todo pavor e medo

 

mas é possível que ainda

um mundo novo estabeleça

e estou quase certo

que ele por ti re-nasça

 

e aí então esta estrada

será possível entregar-te

com girassóis nas janelas

sem tanques

sem estilhaços

 

apenas humanas janelas

de corações

pernas

e braços

 

para proclamar o amor presente

e o ponto final da ditadura

amanhecer à luz do sol

e somente re-nascer

essa luz de liberdade

 

PONTAL

(a Ana Augusta Rodrigues)

 

aqui

onde rio e mar

se beijam

aqui no fim do mundo

onde terra e céu

se abraçam

num ato sexual

 

aqui

no fim do dia

um barco preso na corda

um peixe preso no anzol

a terra varrida ao vento

casas varridas ao temporal

 

aqui

no mesmo teto

pássaros sobre os calcanhares

homens sobre os girassóis

onde rio e mar se beijam

re-nascem nossos filhos

quando terra e céu

se abraçam

sem ter nem mãe nem pais

 

onde o seu refúgio

é nu meu peito aflito

e a minha solidão

nuteu corpo é

                       paz

 

Ai-5

(a todo homem que faz

do teu suor o nosso pão

de cada dia)

 

falo como se fôssemos

animais sem pastos

fartos de dor

famintos de ilusões

 

como se fôssemos

fantasias já usadas

gastas

e sem aproveitamento

em outros carnavais

 

como se fôssemos

a febre que não mata

o ódio que não falta

em cada quarto ou corpo

como armação tombada

favela por assalto tomada

de enchente de polícia e marginais

 

falo como se fôssemos

a grande queda

e o re-construir dos passos

após raízes descobertas

e um retomar de vozes

e palavras

encobertas por punhais

de um mesmo assassinato

 

como se fôssemos

500 mil barrigas

grávidas de fome

 

falo como se fôssemos

a vontade prenhe nos pulsos

e o nó cego na garganta

a corda em cada esperança

e um farejar de becos

com ratos, sem saídas

 

como se avistasse o mar

mesmo cravado em terra

como se fosse o céu

poeira pó e chão

como se ver morrer Maria

fosse nos matar de alucinação

 

falo como se fôssemos

apenas morte –

suave-mente

como se não passássemos

de apenas mundo

e através do parto

não nascesse o homem

mas gerasse o medo

 

falo como se tudo ou nada

não fosse...

ficasse

eternidade não existisse

prevalecesse

e a farejar os becos

não estivessem ratos

mas o próprio século

 

falo da favela onde nós moramos

como se não fôssemos, mas éramos

quando Maria-amiga não morreu de susto

mas morreu de tédio, nessa cidade inteira

onde nós vivemos como se não éramos

mas fôssemos uma família à mínguas

a so-correr dos custos e se perder dos gestos

sem poder conter ou controlar no peito

a invasão de asfalto em nosso mesmo sangue

 

falo como se a porta dos seus olhos

fosse o ventre desse sol

como se o céu da sua boca

fosse sinal de nossa vida

e não existissem entradas

nem fosse preciso saídas

e não houvesse tantos cortes

tem tantas almas feridas

 

como se abrir fosse fechar

como se chorar fosse sorrir

como se matar não fosse morrer

como se crescer não fosse matar

 

como se a pessoa encantada

levasse o povo no dorso

para um país consciente

e não houvesse paredes

grades – prisões ou muros

e um Jesus de carne e osso

sangrasse em pão sobre o presente

e abrisse em portas pro futuro

 

quanto ao poema sujo

que a nossa vida escreve

pode gerar a flor

dentro esse mesmo pântano

como se fosse escuridão

a doce e plena claridade

 

obs.:  Em 1977 no livro Além da Mesa Posta, em um texto escrito por Orávio de Campos Soares, ele profetiza que, até então, minha poesia mística simbolista, ainda iria se debruçar sobre o social, o político. Nos poemas dessa coletânea Ato 5 publicada em 1979, começo a dar os primeiros passos nesse sentido. Em 1978 no poema Canta Cidade Canta, vencedor do II Festival de Poesia Falada de Campos, acredito que esta meta já estava traçada  de forma  talvez, até, inconscientemente, porque sempre gostei de afirmar que em mim, a poesia, nasce do impulso, flui, sem muito planejamento, é fruto do instante, do Estado de Poesia. Em 1980, com o Boi-Pintadinho, a profecia do Orávio se concretiza,  pois nele a minha voz poética está totalmente afiada para cantar os horrores das nuvens de chumbo que pairou sobre o Brasil de 1964 a 1985, e que, infelizmente, estamos novamente com elas sobre nossas cabeças.


27 de agosto
com muito gosto
fazer setenta e sete
outra coisa me disse
fulinaíma
pra definir o que faço
o traço a cada compasso
pensado sentido vivido
estando inteiro
não par/ti/do
a língua ainda
entre/dentes
a faca
ainda mais afiada
a carNAvalha in/decente
escre/v(l)er
é tudo o que posso
pra desafinar os contentes
desempatar de/repente
o jogo dos reles bandidos
é tudo o que tenho feito
por mais que tenha sofrido
nas unhas dos dedos
nos nervos
na carnadura dos ossos

Artur Gomes

Hoje Balbúrdia PoÉtica especial
no Carioca Bar - Rua Francisca Carvalho de Azevedo, 17
Parque São Caetano - Campos dos Goytacazes-RJ
Espero vocês lá, a partir das 18h

leia mais no blog
Artur Fulinaimagens
https://fulinaimargens.blogspot.com/


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Por Onde Andará Macunaíma?

A poesia te abraça, bom final de semana em casa, na rua, na praça.   A CIDADE NÃO PÁRA Para Chico Science   A cidade não pára com as buzinas...